I. Introdução e Contextualização do Caso
Débora Rodrigues dos Santos, 39 anos, cristã, esposa e mãe de dois filhos menores, relata em sua carta ter participado de uma manifestação em Brasília após as eleições de 2022, acreditando tratar-se de um ato pacífico. Durante o evento, influenciada por um desconhecido e no "calor do momento", terminou de pichar uma estátua na Praça dos Três Poderes, ato que reconhece como impulsivo e do qual se arrepende profundamente. Presa há um ano e sete meses, ela pede clemência, alegando desconhecimento da gravidade simbólica e material do bem danificado (uma estátua do STF avaliada em R$ 2 milhões) e ausência de intenção de atentar contra o Estado Democrático de Direito.
A defesa sustenta que a conduta de Débora não configura crime doloso contra a ordem democrática, mas sim um ato isolado de dano ao patrimônio público, cuja tipicidade material deve ser afastada ou, alternativamente, mitigada por circunstâncias atenuantes e pela aplicação de princípios de proporcionalidade e humanidade.
II. Fundamentos Jurídicos da Defesa
1. Atipicidade Material da Conduta: Princípio da Insignificância e Ausência de Lesividade Relevante
O Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento de que a tipicidade penal exige não apenas a adequação formal ao tipo penal, mas também a lesividade material relevante ao bem jurídico tutelado (HC 84.412/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 2004). Para a aplicação do princípio da insignificância, devem estar presentes: (a) mínima ofensividade da conduta; (b) ausência de periculosidade social; (c) reduzido grau de reprovabilidade; e (d) inexpressividade da lesão jurídica (RE 1.065.056, Rel. Min. Marco Aurélio, 2018).
No caso de Débora:
-Mínima ofensividade: O ato de pichar a estátua, embora reprovável, não comprometeu estruturalmente o bem nem gerou risco concreto à ordem pública ou ao funcionamento do STF.
- Ausência de periculosidade social: Débora não integrou grupos organizados, não portou armas e não participou da invasão das sedes dos Três Poderes, limitando-se a um ato isolado na praça.
- Reduzido grau de reprovabilidade: A conduta foi impulsiva, sem premeditação, e motivada por influência externa, em um contexto de exaltação coletiva.
- Inexpressividade da lesão: O dano ao patrimônio público foi reversível (pichação pode ser removida), e não há prova de que o ato visou desestabilizar as instituições democráticas.
Assim, a conduta não atinge a gravidade necessária para justificar a persecução penal, especialmente considerando o perfil da ré — cidadã sem antecedentes, mãe de família e trabalhadora —, o que reforça a aplicação do princípio da insignificância, conforme doutrina de Zaffaroni e Pierangeli (2007), que defendem a exclusão da tipicidade em casos de lesão ínfima.
2. Ausência de Dolo Específico contra o Estado Democrático de Direito
A imputação de crimes contra a ordem democrática (ex.: Lei 14.197/2021, que alterou o Código Penal para incluir delitos como o do art. 359-L) exige dolo específico, ou seja, a intenção deliberada de subverter as instituições democráticas. A jurisprudência do STF é clara ao exigir prova robusta da vontade direcionada a esse fim (HC 157.631, Rel. Min. Edson Fachin, 2018).
Débora afirma em sua carta que "não sabia da importância daquela estátua" e que "jamais teria a audácia de sequer encostar nela" se conhecesse seu significado. Sua conduta — terminar uma pichação iniciada por outro — não revela intenção de abolir o Estado de Direito, mas sim um ato irrefletido em um contexto de tumulto. A doutrina moderna, como a de Bitencourt (2020), destaca que a ausência de consciência plena da ilicitude e do objetivo político do ato exclui o dolo específico, configurando, no máximo, culpa ou um delito menor, como dano simples (art. 163, CP).
3. Arrependimento Espontâneo e Reparação Moral como Fatores Atenuantes
O art. 16 do Código Penal prevê o arrependimento posterior como causa de diminuição de pena, aplicável quando o agente, voluntariamente, repara o dano ou restitui a coisa antes do recebimento da denúncia. Embora Débora não tenha reparado materialmente o dano (impossibilitada pela prisão), seu arrependimento espontâneo é evidente na carta, onde expressa "vergonha" e "culpa", além de repudiar o vandalismo.
O STJ reconhece que o arrependimento não precisa ser material para influenciar a pena, podendo ser considerado como atenuante genérica (art. 65, III, "b", CP) quando demonstra genuína contrição (HC 452.163/RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 2018). A doutrina de Nucci (2021) corrobora que a manifestação sincera de arrependimento, mesmo sem reparação efetiva, deve ser valorada na dosimetria, especialmente em casos de réus primários e de bons antecedentes, como Débora.
4. Proporcionalidade e Individualização da Pena: Garantias Constitucionais
O art. 5º, XLVI, da Constituição Federal assegura a individualização da pena, exigindo que a sanção seja proporcional à gravidade da conduta e às circunstâncias pessoais do agente. O STF tem reiterado que penas desproporcionais violam o devido processo legal (HC 126.292, Rel. Min. Marco Aurélio, 2016).
A prisão de Débora por um ano e sete meses, com separação de seus filhos menores e prejuízo irreparável à família, excede a razoabilidade para um ato isolado de pichação. A doutrina de Greco (2022) defende que a aplicação de penas severas a condutas periféricas em contextos de crise política deve ser evitada, sob pena de criminalização excessiva e desumanização do réu.
5. Contexto de Exaltação Coletiva: Teoria da Imputação Objetiva
A teoria da imputação objetiva, adotada pelo STF (HC 111.040, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2012), exige que o resultado lesivo seja objetivamente imputável ao agente, considerando o risco criado e a previsibilidade do evento. Débora agiu em um ambiente de "movimento acalorado", sob influência de terceiros, sem controle sobre a escalada dos eventos de 8 de janeiro. Sua participação foi mínima e desprovida de planejamento, o que, segundo Roxin (2006), afasta a imputação objetiva de resultados mais graves, como os danos institucionais atribuídos ao conjunto dos manifestantes.
III. Pedidos e Argumentos Finais
Com base nos fundamentos expostos, a defesa requer:
1. Absolvição por atipicidade material: Reconhecimento do princípio da insignificância e exclusão da tipicidade penal, nos termos do art. 386, III, do CPP.
2. Subsidiariamente, absolvição por ausência de dolo: Falta de prova de intenção de atentar contra o Estado Democrático de Direito (art. 386, VI, CPP).
3. Em última hipótese, redução da pena: Aplicação do art. 16 ou art. 65, III, "b", do CP, considerando o arrependimento espontâneo, a primariedade e as circunstâncias pessoais da ré, com substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (art. 44, CP).
A defesa apela ao STF para que, em nome da justiça e da humanidade, considere o contexto de vida de Débora — uma mãe trabalhadora, sem histórico criminal, arrastada por um momento de desorientação coletiva — e aplique o princípio da proporcionalidade, evitando que um erro impulsivo destrua irreversivelmente sua família.
IV. Referências Bibliográficas
Jurisprudência
- STF, HC 84.412/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, j. 19/10/2004, DJ 19/11/2004.
- STF, RE 1.065.056, Rel. Min. Marco Aurélio, 1ª Turma, j. 27/03/2018, DJE 13/04/2018.
- STF, HC 157.631, Rel. Min. Edson Fachin, 2ª Turma, j. 20/03/2018, DJE 10/04/2018.
- STF, HC 111.040, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. 05/06/2012, DJE 20/06/2012.
- STF, HC 126.292, Rel. Min. Marco Aurélio, Plenário, j. 17/02/2016, DJE 25/02/2016.
- STJ, HC 452.163/RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, j. 19/06/2018, DJE 25/06/2018.
Doutrina
- Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 26ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
- Greco, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 24ª ed. Niterói: Impetus, 2022.
- Nucci, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
- Roxin, Claus. Derecho Penal: Parte General – Fundamentos. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña. Madrid: Civitas, 2006.
- Zaffaroni, Eugenio Raúl; Pierangeli, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
Legislação
- Constituição Federal de 1988, arts. 5º, XLVI e LV.
- Código Penal, arts. 16, 44, 65, 163 e 359-L.
- Código de Processo Penal, art. 386, III e VI.
- Lei 14.197/2021 (Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito).
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