RELATÓRIO JURÍDICO: ANÁLISE DE LACUNAS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE CRIMES CONTRA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO


1. Introdução
O caso em análise envolve a condenação proposta de 14 anos de prisão para Débora Rodrigues dos Santos, acusada de pichar a estátua "A Justiça" em frente ao STF em 8 de janeiro de 2023, no contexto de atos considerados uma tentativa de golpe de Estado. A pena, defendida pelo ministro Alexandre de Moraes e endossada por Celso de Mello, baseia-se em crimes como golpe de Estado (art. 359-M, CP), abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L, CP), associação criminosa armada (art. 288, parágrafo único, CP), dano qualificado (art. 163, parágrafo único, CP) e deterioração de patrimônio tombado (Lei nº 9.605/98, art. 62, I). Contudo, juristas e doutrinadores têm apontado possíveis lacunas na legislação penal brasileira que podem fragilizar a aplicação desses tipos penais, especialmente em situações limítrofes entre atos preparatórios e executórios. Este relatório examina tais lacunas, recorre ao direito comparado e propõe uma análise jurídica para aprimorar o enfrentamento desses argumentos acusatórios.
2. Contextualização do Problema
Os eventos de 8 de janeiro de 2023 envolveram atos de vandalismo e invasão de prédios públicos, interpretados como uma tentativa de subverter a ordem democrática. A acusação sustenta que a pichação da estátua integra um conjunto de ações criminosas em concurso material (art. 69, CP), justificando a severidade da pena. No entanto, há controvérsias sobre a tipificação penal, especialmente quanto à configuração da tentativa punível e à proporcionalidade da resposta penal. Juristas como Janaína Paschoal e Alberto Toron questionam se os atos atingiram a fase executória ou permaneceram na esfera preparatória, o que evidencia uma potencial lacuna na legislação brasileira.
3. Lacunas Identificadas na Legislação Brasileira
A análise da legislação penal brasileira revela as seguintes lacunas:
  1. Falta de Clareza na Transição entre Atos Preparatórios e Executórios
    O Código Penal brasileiro adota o conceito de iter criminis, dividindo o caminho do crime em cogitação, preparação, execução e consumação. Apenas a execução é punível como tentativa (art. 14, II, CP). Nos crimes contra o Estado Democrático de Direito (arts. 359-L e 359-M), o verbo "tentar" sugere que a consumação se dá com o início da execução. Contudo, a ausência de critérios objetivos para distinguir atos preparatórios de atos executórios gera insegurança jurídica. No caso em tela, a pichação pode ser vista como ato preparatório ou simbólico, não necessariamente como início de uma ação concreta para abolir o regime democrático.
    Perspectiva Doutrinária: Nilo Batista (2019) argumenta que crimes de atentado, como os arts. 359-L e 359-M, equiparam a tentativa à consumação, mas exigem um ataque concreto ao bem jurídico. A falta de definição legislativa sobre o que constitui "início de execução" nesses casos abre margem para interpretações subjetivas.
  2. Verbos Nucleares Genéricos nos Tipos Penais
    Os arts. 359-L ("tentar abolir") e 359-M ("tentar depor") utilizam verbos abertos, criticados por juristas como João Rezende por sua vagueza. Essa imprecisão dificulta a aplicação taxativa exigida pelo princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, CF), permitindo que atos de menor potencial ofensivo sejam enquadrados como crimes gravíssimos.
  3. Ausência de Critérios para Proporcionalidade em Crimes de Concurso Material
    O critério do cúmulo material (art. 69, CP) soma as penas de cada crime, mas não oferece parâmetros claros para modular a pena total em função da gravidade relativa de cada conduta. No caso, a pichação (dano qualificado) é tratada como elemento de igual peso a uma tentativa de golpe, o que levanta questionamentos sobre proporcionalidade.
4. Direito Comparado: Lições de Outras Jurisdições
O direito comparado oferece insights valiosos para enfrentar essas lacunas:
  • Alemanha: O Código Penal alemão (StGB) tipifica crimes contra a ordem constitucional (arts. 81-83) com precisão, exigindo "atos concretos de preparação" (como aquisição de armas ou organização de grupos armados) para configurar tentativa punível. A jurisprudência alemã, influenciada por Claus Roxin, enfatiza o "domínio do fato" para responsabilizar líderes, mas exige prova objetiva de atos executórios.
  • Estados Unidos: O delito de "sedição" (18 U.S.C. § 2384) requer a demonstração de um plano concreto para usar força contra o governo, com jurisprudência (e.g., United States v. Rahman, 1995) exigindo evidências de atos além da mera incitação verbal ou simbólica.
  • França: O Código Penal francês (art. 411-4) pune a "conspiração para atentado contra a autoridade do Estado", mas diferencia claramente atos preparatórios (puníveis apenas se acompanhados de meios materiais, como armas) de atos executórios.
Esses sistemas sugerem que a legislação brasileira poderia se beneficiar de maior especificidade na definição de atos puníveis como tentativa e de uma distinção mais clara entre níveis de participação em crimes contra a democracia.
5. Proposta de Análise Jurídica e Solução Legislativa
Com base nas lacunas identificadas e nas lições do direito comparado, propõe-se o seguinte:
  1. Reforma dos Arts. 359-L e 359-M do Código Penal
    Inserir parágrafos que definam "atos concretos de execução" como aqueles que impliquem risco real e imediato ao bem jurídico (e.g., uso de violência, organização armada ou interrupção efetiva de poderes constitucionais). Exemplo de redação:
    • "§ 1º Considera-se início de execução, para fins deste artigo, a prática de atos que, por sua natureza e circunstâncias, demonstrem capacidade objetiva de ameaçar a continuidade do Estado Democrático de Direito ou do governo legitimamente constituído."
  2. Critérios para Distinção entre Atos Preparatórios e Executórios
    Adotar uma norma complementar que liste exemplos de condutas (e.g., aquisição de armas, treinamento paramilitar) como indícios objetivos de tentativa, evitando a punição de atos simbólicos isolados, como a pichação no caso em tela, sem conexão direta com um plano executório.
  3. Proporcionalidade no Cúmulo Material
    Alterar o art. 69 do CP para incluir um mecanismo de ponderação das penas em crimes de concurso material, considerando a gravidade relativa de cada conduta e sua contribuição para o resultado pretendido.
6. Conclusão
A legislação brasileira sobre crimes contra o Estado Democrático de Direito apresenta lacunas que fragilizam os argumentos acusatórios, especialmente quanto à definição de tentativa punível e à proporcionalidade das penas. A vagueza dos tipos penais e a falta de critérios objetivos para o iter criminis geram controvérsias, como no caso de Débora Rodrigues dos Santos, onde a pichação foi elevada a elemento de uma tentativa de golpe. O direito comparado demonstra que maior precisão legislativa é viável e desejável. A proposta aqui apresentada visa equilibrar a proteção da democracia com os princípios da legalidade e da proporcionalidade, fortalecendo a segurança jurídica.
7. Referências Bibliográficas
  • BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2019.
  • GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. Niterói: Impetus, 2020.
  • PASCHOAL, Janaína. Comentários em redes sociais, 2023 (citados em CNN Brasil, 23/11/2024).
  • ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General. Madrid: Civitas, 2008.
  • TORON, Alberto. Entrevista à CNN Brasil, 23/11/2024.
  • Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848/1940).
  • Código Penal Alemão (Strafgesetzbuch – StGB).
  • Código Penal Francês (Code Pénal).
  • United States Code (18 U.S.C.).

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